Eram
imensas aquelas asas negras que pairavam por sobre mim, encobrindo um azul que
não era azul. Aos meus pés, água negra como petróleo e tão densa que lembrei de
como ficava uma gelatina no meio do processo de endurecimento.
Árvores
enormes erguiam-se aos céus, aquele céu que eu não conseguia deslumbrar como um
dia foi possível. A ave estava ali, me observando. Os olhos brilhantes e
vigilantes, paralisados. O bico formoso e tão negro como a água, ou como a
própria penugem.
Algo
sobre meus ombros pesavam. Eram as garras afiadas que afundavam em minha carne,
o sangue escorrendo livre. Era um mar vermelho que descia minha pele alva,
gélida.
Meus
olhos fixaram ao longe, incapaz de distinguir as imagens que se construíam aos
poucos bem ali, não muito longe. Uma moça esguia, esquelética, tão frágil vinha
surgindo, subindo o morro íngreme e escorregadio. Sua cabeça girava no próprio
eixo, mas era diferente...
Eram
duas cabeças. Uma das faces me olhou séria, nariz franzido, como um felino em
ataque. A outra face, entretanto, tinha não uma boca, mas um risco curvado para
baixo, como se um sorriso cortado ao contrário. Era como ver o mundo em câmera
lenta, mas ela não. A moça caminhava em diferentes velocidades, mas todas ao
mesmo tempo. Havia um contorno que vibrava em outra frequência, quebrando a
aura ao redor dela.
Os
olhos da face triste eram imensos, um oceano profundo. Senti vertigem ao fixa-lo.
Enquanto os olhos da face em ódio eram rasos, frios e sem brilho. Como uma
serpente dançante ela continuava vindo até mim.
Ouvi
sons de trovão, mas soube o que era no momento em que ergui meus olhos. A ave
levantou voo, sumindo na escuridão do céu que não era mais azul. Não senti o ar
em movimento com sua partido, nada além do som ensurdecedor do bater de asas.
Vagarosamente
as árvores se curvaram tal como a cera de uma vela quando o fogo aquece demais.
Em segundos, não havia mais nada. Até mesmo a água negra recusou, como se fosse
absorvida pelo terreno esburacado.
Ela
parou na minha frente, o par de cabeças me observando. Compaixão, indiferença.
Temor e ódio. Desejo e nojo.
Suas
mãos me tocaram e senti como uma corrente elétrica em cada nervo meu, correndo
por todas as minhas veias como fiação clandestinas mal interligadas. Talvez
fosse apenas o efeito colateral, mas senti o mundo inteiro tremer. Terremoto
que saía de mim e escoava por todos os cantos do planeta.
As
cabeças pararam e, de súbito, eram uma só. Quatro olhos enfileirados me
observavam e notei a penugem negra na extensão dos braços dela agora. As unhas
amareladas semelhantes às garras que sentira no meu ombro. Era tudo parte de
uma coisa só.
Algo
serpenteava minhas pernas, unindo-as. Olhei para baixo e estávamos em fusão.
Ela era um espectro negro que deslizava e subia por sobre mim, tomando-me,
preenchendo as lacunas que sentia dentro de mim. Era um veneno que me
completava, a loucura que me fazia são.
Um
grito ecoou em minha mente, alto demais para suportar e me manter em pé. Caí e
senti o gosto de sangue em minha boca, a sujeira do chão em minhas mãos, as
luzes piscando em meus olhos, o mundo criando e se desfazendo em milhões de
formas.
Entorpecido,
um último espasmo, meus olhos se retorceram. Os intervalos de luzes brancas
diminuíam. As vozes vinham aos poucos e o cheiro familiar invadiu meus
sentidos, fazendo-me saber exatamente onde estava de novo.
Respirei
profundamente, vendo o vulto negro daquela mulher de duas cabeças sumir por
aquele vale escuro e sombrio. Senti o braço sendo perfurado, um líquido me
queimava as veias e me fazia mais lúcido, trazendo-me de volta ao mundo real que
eu tentava escapar.
-
Deixem-me partir! – supliquei na vã tentativa de voltar ao vale negro de
outrora. Eu não temia aquele lugar, eu o desejava, eu o criara. Era meu
refúgio, era onde eu queria estar...
Muito interessante, acho incrível como a sua leitura me leva ater simplesmente uma explosão sensorial mesmo não sendo audio visual, pura leitura, é como estar dentro de uma obra de arte abstrata mas que ao mesmo tempo faz todo o sentido. só por curiosidade (mais uma vez) essa história é sobre alguém que tenta se suicidar com uso de remédios ou de alguem viciado?
ResponderExcluirÉ sobre ter vontade de morrer. Um suicídio sim, mas não me prendi à forma dele.
ExcluirEste comentário foi removido por um administrador do blog.
Excluir